quinta-feira, 5 de maio de 2011

Os limites da democracia libertária: Quanto vale a abstenção? E o voto em branco?

Voto - Sufrágio ou manifestação da opinião individual
a respeito de alguma pessoa ou de alguma coisa que queremos
ou que não queremos que seja eleita ou posta em vigor.
(in dicionário priberam da lingua portuguesa)

Desengane-se quem acha que a abstenção e o voto em branco representam uma tomada de posição política: isso só aconteceria de forma clara através da adopção de um programa político ou da expressão pública clara de qual o sentido desse não voto. Na prática, as únicas formas de saber se seria esse o sentido do não voto, implicaria ou a sua transformação em voto - isso implicaria assumir uma existência legal para efeitos eleitorais -, ou a afirmação de um grande movimento social e político que tomasse as ruas e anulasse o significado e os efeitos do processo eleitoral. A primeira opção é uma contradição nos termos; a segunda, a acontecer, poderia até constituir um ponto de partida, mas deixaria todas as possibilidades de saída em aberto, e uma saída democrática implicaria organizar processos de decisão política que poderiam incluir mecanismos de votação.

A desvalorização do poder do voto está presente, por exemplo, na ideia de uma democracia libertária, a qual até pode assumir a defesa de um programa político mas parte do pressuposto que este não deve ir a votos, que deve ser conquistado pelas práticas sociais, nas ruas, pela acção directa. O pensamento libertário não é, de facto, apolítico e é a sua valorização do acto, da acção, da participação, da defesa da transformação pelas práticas e pelas relações sociais que o tornam tão interessante – de facto, em tempos como os de hoje, precisamos tanto de uma cultura de democracia participativa como de pão para a boca. Mas é na desvalorização, quase negação, do poder do voto que está a sua contradição e a sua fraqueza. Contradição: se todo o acto é um acto político, porque é que não há de o ser também o voto? Fraqueza: não é a rejeição do valor do voto a base de um pensamento fascizante?

Neste sentido, a questão que se coloca é: se não nos revemos no mundo em que vivemos porque é que não exploramos alternativas, apresentamos novas propostas, e batemo-nos por elas, nas ruas e nas urnas? Porque esta democracia é capitalista e temos de estar fora dela, dizem-nos uns. Porque os partidos estão submersos nos jogos de poder e de dinheiro, acrescentam. Porque o sistema não permite escolhas verdadeiramente democráticas, dizem outros. Porque construir alternativas requer construir novas formas de organização, isenta dos vícios dos jogos de poder, isenta dos vícios do capitalismo. Tudo isto tem tanto de verdade como de mentira; tanto de potencial de transformação social como de potencial para a manutenção do estado actual de coisas:
  1. Mais coisa, menos coisa, esta é a democracia conquistada pela Revolta de Abril. Teve recuos? Claro que sim. É bem mais capitalista do que aquela que foi sonhada pela constituição de 75? Claro que sim. Mas não estou a ver em que é que não votar torna-a menos capitalista.
  2. Não há política sem relações de poder - estas assumem, às vezes, a faceta de jogo e, sim, o dinheiro conta nesse totobola -, e não há política sem disputa de interesses. Os jogos de poder e a disputa de interesses não existem apenas nos partidos. A política, se se pretende que seja consequente, que produza mudanças e contribua para a transformação social, implica a disputa de poder, seja ele o poder das ruas ou o poder institucional. Se é verdade que a construção de alternativas implica o ensaio de novas formas de organização social, não nos podemos dar ao luxo de abdicar de uma das conquistas da nossa democracia: o direito ao voto e a liberdade de organização política. Pintar essas conquistas como algo obsceno, como algo do qual nos devemos distanciar, foi uma das maiores vitórias simbólicas do populismo e da cultura capitalista.
  3. Os partidos devem ser sujeitos à crítica e ao escrutínio democrático. Claro que sim. E isso só é possível pela reapropriação, pela gente comum, da política, incluindo a partidária. Se é verdade que os partidos não se devem substituir aos movimentos sociais, a forma de organização em partido político tem as duas vantagens: implica um compromisso com ideias e programas que, em tese, torna a política um acto consequente. Exigir a transparência dos compromissos e a coerência dos actos é, em meu entender, uma tarefas fundamentais desse escrutínio democrático. Ora, as eleições são um momento chave desse escrutínio.
  4. É fundamental ensaiar práticas contra-culturais, construir alternativas à cultura capitalista dominante. Sem dúvida que sim. Precisamos de ensaiar alternativas para nos dar alento, para experimentar a sua viabilidade, constituirmo-nos como sujeito(s) político(s) colectivo(s). Não nos iludemos, no entanto, quanto à pureza dessas novas formas de organização, porque o erro faz parte da vida, da individual e da colectiva. Vou mais longe ainda: o erro é um verdadeiro laboratório de aprendizagem individual e colectiva. Para bem ou para mal, uma aprendizagem colectiva que parta do aqui e agora, requer a disputa de poder dentro e fora do contexto cultural dominante.
Daqui a menos de um mês teremos eleições e estou convencida a que assistiremos a uma das campanhas eleitorais mais surreais da história da democracia portuguesa. Suspeito que ao fim destas quatro semanas, a vontade de não votar e de mandar as urnas às urtigas será imensa. É tempo de reflectir: Quanto vale a abstenção? E o voto em branco? Em qualquer dos casos, e segundo as regras do jogo democrático, o que conta são os votos expressos em urna. Tudo o resto vale nada, nicles, zero. Até pode ser visto como resultado de um sentimento de revolta perante o estado actual de coisas, mas também da indiferença, da inacção, do tanto faz. Mais do que nunca, e face o poderoso atropelamento democrático que está a ser feito, há que ser claro: abstermo-nos num jogo em que o programa da Troika conta já com o apoio dos dois maiores partidos do cenário eleitoral português e do populismo-mor, não votar corresponde a compactuar, pela inacção, com a política da austeridade, da precariedade e do atrofiamento democrático.

este post foi também foi publicado em Portugal Uncut

19 comentários:

  1. Excelente!

    www.gov.blogtok.com

    Projecto experimental para implementação da Democracia Directa. Brevemente com ferramenta para o efeito.

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  2. Já partilhei o texto em sede de Facebook, onde asse gamos praça para discussão. Como vos contactar? Jsl@blogtok.com

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  3. Ainda bem que tens interesse no tema - não é questão fácil de tratar e a confusão sobre a relação entre democracia participativa e a democracia representativa é imensa. Desse ponto vista, a vossa proposta de democracia directa é algo estranha - o ministro não pode ser do partido [coloca desde logo em causa o princípio da liberdade de organização políticas]... e não podia estar nas listas que foram submetidas a votos? não estou a ver em que é que isso será mais democrático... Mas acho que sim, pode ser um exercício especulativo interessante :)

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  4. Concordo quando dizes que é um exercício especulativo interessante. Um partido fiel aos seus princípios fundamentais. Acabar com a partidocracia e instaurar uma democracia cujo líder é o povo. Até lá tem de se constituir normalmente mas para ganhar as eleições apela ao não tacho, elegendo ministros dos outros partidos, mas elegendo os seus deputados, meros porta vozes das decisões dos membros. Creio que por ser algo muito diferente do formatado, não entendeu, mas brevemente vamos lançar projecto para fazer isso em laboratório. Mostrar no terreno como funcionará. Isso é que é democrático, porque o que se faz actualmente é tudo menos democracia. O povo ao poder, será a luta deste século.

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  5. Grupo no FB ...

    GOV; Eles ao poder.

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  6. Acho muito bem: poder ao povo. Tenho é muitas dúvidas que o que está proposto no tal site contribua para isso, por várias razões entre as quais a pela falta de clareza dos processos. Não há democracia que sobreviva a uma tal confusão! E fico com uma dúvida: será que realmente percebeste bem o sentido do post?

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  7. Cara LF,

    julgo ter percebido sobre o tarde que era aqui, mais do que no Portugal Uncut, que devia ter deixado o comentário que lá deixei. Aqui o (re)deixo, pois.

    Dizer que a "democracia libertária" recusa o voto é inexacto. Pode contestar o sistema de democracia representativa, mas na base de assembleias de cidadãos, "participativas" e igualitárias, onde se vota também e até vota mais e mais vezes.
    Também não é uma consequência necessária para quem assuma as posições da "democracia libertária" ou "directa", contestando os sistema representativo e a divisão estrutural e permanente entre governantes e governados, abster-se de votar nas eleições que temos. O facto de se querer transformar e democratizar radicalmente o regime das relações de poder existentes (na política, na economia, etc.) não implica que não se aja no seu interior ou não se intervenha "institucionalmente".
    Houve e continuarão a existir anarquistas que assumem as posições de que aqui é acusada a "democracia libertária". Mas fazer caracterizar por elas o conjunto do movimento libertário e da sua história é absolutamente disparatado.
    Acresce que o traço distintivo da "democracia directa", "libertária" ou "igualitariamente participativa" é o princípio da participação de todos os cidadãos na deliberação e decisão das leis e medidas por que se governem. E que, pelo menos assim entendida, a democracia é uma forma de autogoverno que, sem reduzir a política ao voto, implica mais a sua extensão e frequência crescentes do que o contrário.

    Saudações democráticas

    msp

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  8. Não há problema, também fazia sentido colocar no outro blog. Obrigada pelo comentário, colocas questões bastante interessante e também aqui a minha resposta:

    Miguel, a ideia era acentuar a tendência para desvalorizar o voto - e às vezes a recusa - não tanto fazer equivaler democracia libertária a recusa do voto. De qualquer forma, agradeço o alerta. Sobre a questão de fundo, que queria colocar em debate, concordo contigo: «O facto de se querer transformar e democratizar radicalmente o regime das relações de poder existentes (na política, na economia, etc.) não implica que não se aja no seu interior ou não se intervenha "institucionalmente".»
    Retribuo as saudações democráticas :) Lídia

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  9. OK - fica tudo mais claro assim. Vou já ao outro café dizer isto mesmo. Também eu acho que as questões subjacentes ao nosso mal-entendido são boas e vale a pena pô-las enquanto andamos.

    Abrç

    msp

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  10. Lidia, andas a apelar ao voto dos anarcas??
    Nao chega o camarada Louca andar a espernear para a esquerda e para a direita a pedir votos ao PSD, CDS, descontentes do PS, Geracao a Rasca, etc, etc...
    Frederico

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  11. Ó Camarada Fred, então não é que temos para breve uma das eleições [legislativas] mais surreais dos ultimos trinta anos? Com quem querias que discutisse o tema do voto em branco? Com os fachos? Abraço, Lídia

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  12. Miguel, acho que sim, são questões que importa ir aclarando pelo caminho. Abraço, Lídia

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  13. Oh Lidia, o grosso do voto em branco e da abstencao nao vem dos democratas libertarios. Alias estes sao completamente marginais na matematica eleitoral. Alem disso e muito mais facil convencer um abstencionista cronico e completamente fora da politica do que um anarca a deslocar-se a uma urna. Mesmo apesar deles convergirem em muitos pontos. Quer se queira quer nao a margem para o BE crescer ou para se manter e para o lado do PS e dada a postura mais radical do BE em nao negociar e ser radicalmente contra o FMI/UE/BCE associada a ventania liberalizadora do PSD que apela ao voto util da esquerda no PS, o BE vai ter dias dificeis. Claro que as sondagens valem o que valem e ate as eleicoes muita coisa pode acontecer, mas parece-me que o BE vai levar um tombo consideravel. Pode ser que isto me leve a votar neles so para ajudar a equilibrar, mas mesmo assim sinto-me mais tentado em dar o meu voto a um partido pequeno para ajudar a haver algum ar fresco na politica.

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  14. Bom, eu não sei bem o que o comentador aqui em cima entende por "anarca", mas é, sem dúvida, qualquer coisa que nada tem a ver com a "democracia libertária", que essa é sinónimo de "cidadania governante", de participação igualitária de todos no exercício do poder político (incluindo a direcção e funcionamento institucionais da economia) que os governa.

    msp

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  15. Não são sinónimos, sem dúvida, meu caro. O primeiro é um estereótipo de um certo tipo de personagens que por vezes pode utilizar uma oratória próxima da "democracia libertária". É um termo utilizado na gíria política, mais dominante em certos sectores é verdade, e em alguns outros meios. No entanto traduz-se mais num estilo de vida do que propriamente em algo próximo de uma ideologia política.

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  16. De onde, caro Frederico Brandão, eu concluo que o seu desdém pelos "anarcas folclóricos" não é extensivo àquilo a que podemos chamar a "democracia libertária" (não meramente "representativa") que a Lídia e eu começámos a discutir. E é uma conclusão que muito me alegra.

    msp

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  17. Olha, Fred, acho que não percebeste bem o sentido do meu post: eu estou mais preocupada com o reforço do tripé (PS, PSD e CDS; em particular deste ultimo) da troika do que com o tombo que o BE possa levar. Um tombo do BE no quadro de reforço da esquerda [atrofio do BE] é improvável, mas é naquela, os tombos são o que são - as organizações, tal como as pessoas, caem e voltam erguer-se. Não me assusto com os meus tombos quanto mais com os do BE. Agora o reforço do tripé é mesmo coisa feia, é um tombo do qual teremos muitas dificuldades de nos levantar. Seria uma pena que isso se verificasse pela inércia do povo de esquerda que procura mudança, quer aquele que não se revê muito na política institucional, quer aquele que está mais agarrado à política institucional. Neste último caso, a história é outra: este povo estar mais preso ao medo e quase prefere ter de pedir licença à troika para existir do que apostar em construir alternativas à esquerda. Enfim, Fred, acho que sim, essa uma boa opção, no BE, no PCP, no mofo [que não seja do tipo facho], no fresco, sei lá... na inércia e na lenga lenga no inevitável é que não.

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  18. Pacifico Miguel, e muito mais uma questao semantica do que conceptual. Se substituisses o "libertaria" por "participativa" estariamos naturalmente muito mais proximos.
    Oh Lidia, tudo o que nao seja PS/PSD/CDS no actual quadro corresponde apena a PCP e BE. Nesse sentido e como nao acredito que estejas a apelar ao voto no PC, so resta uma alternativa. Eu pessoalmente ja estou um bocadinho farto deste tango parlamentar a 5 e portanto estou muito mais proximo de tudo o que seja independente e pequeno partido (excluindo fachos, monarquicos, e coisas que tal), mesmo com todos os riscos que isto acarreta :) E contra os meus principios votar util no PS, so por medo do PSD e CDS, e seguindo a mesma logica tambem teria de ser contra o voto util no BE em oposicao ao bloco PS/PSD/CDS. Claro que e muito mais confortavel um parlamento com mais esquerda do que direita, mas nao deixa de ser a mesma logica que se aplica ao voto util no PS. Gostava que houvesse mais espaco para aparecerem ideias diferentes, pessoas diferentes, novas formas de fazer politica e nao me parece que isso aconteca votando sempre nos mesmos 5..

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  19. Nem tinha visto a tua resposta... Há sempre uma hipótese: formares um partido. Quanto ao apelo, o apelo que faço é mesmo um apelo ao voto contra a troika. Isso quer dizer que, não obstante a as minhas preferências políticas - sou militante do bloco - esse apelo inclui um apelo ao voto no PCP. Pois é, não sou mesmo sectária e tinha mesmo a ideia que já tinhas percebido isso... Prefiro um voto no PCP do que um voto em branco.

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