A justiça cognitiva é um conceito que parte da noção de que a dominação e a exploração não são apenas causadas pelo controle da produção material, mas também pelo controle dos meios de produção do conhecimento. A economia que nos está a ser ditatorialmente imposta absorveu muito bem a importância de explorar o reverso deste conceito – às vezes parece-me que a frase tão vulgarizada “É a economia, estúpido!” concorre precisamente para esse objectivo – o de nos querer impor a ideia de sermos estúpid@s e que, por isso, não somos capazes de compreender algo tão complexo e tão fora das nossas mãos como a economia. Impõe e alimenta, portanto, a injustiça cognitiva. E fá-lo muito eficazmente, usando as três dimensões do poder na perfeição: no discurso, nas práticas e nas instituições. Observar o que tem ditado os rumos da governação em Portugal (e não só) e da sua suposta alternativa é um exemplo acabado disso. Eu diria mais: a economia de mercado conseguiu auto-ascender à categoria de divindade de tal forma que deveríamos substituir na Constituição o estado laico pelo estado oikolibermercatus [estado de mercado livre].
Nada poderia ser mais errado: nós percebemos a economia na nossa vida de todos os dias, seja ao ir ao supermercado e pagar cada vez mais, no recibo de salário (quando o temos), na declaração de irs, no que pagamos para estudar ou por estar doente, nas taxas que pagamos aos bancos por tudo e - muitas vezes - por nada, ou na miraculosa matemática de pedir um empréstimo de dez mil euros para pagar depois o dobro. E entre uma rotina diária e outra percebemos o essencial desta economia onde nos andam a obrigar a viver: que está centrada em apenas algumas pessoas – as muito ricas; que nos obriga a viver cada vez pior para pagarmos os erros gerados nessa própria lógica ultraliberal, e quem sustenta essa lógica não só não se responsabiliza pelos erros cometidos, como rejeita qualquer possibilidade de alternativa. E finalmente compreendemos também, e muito facilmente, que as instituições de crédito que sustentam este modo económico, o capitalismo, só têm dinheiro para emprestar quando lhes interessa e que aquilo que ganham em lucros é um dinheiro que não sabemos nem temos o direito de saber para onde vai e que de forma alguma poderá contribuir para ajudar o país a sair da crise.
Se somarmos a este conhecimento mais algum do terreno das abstracções supostamente neutras que este sistema nos tem vindo a fazer engolir, como “mercados” e “agências de rating”, que não sendo obviamente abstracções ou neutras, pois são simplesmente pessoas com interesses económicos específicos que se podem descrever, na generalidade, como: ficarem cada vez mais ric@s à custa do trabalho e da exploração da maioria de nós, teremos compreendido o capitalismo no seu todo e poderemos começar a afirmar coisas muito importantes:
- Que a treta que nos andam a tentar enfiar, de que o nosso conhecimento – nós, pessoas comuns, não economistas – não é suficientemente válido para nos permitir questionar os ditames económicos não passa disso mesmo, de uma treta;
- Que, portanto, estúpid@s uma ova - a economia molda uma parte importante da nossa vida e sobre a nossa vida percebemos e decidimos nós;
- Estúpido é acreditar que uma economia assim funciona ou interessa a mais alguém além daquel@s que enriquecem com ela;
- Que apenas nos interessa uma economia que coloque o desenvolvimento sustentável da vida humana, do meio ambiente e do bem estar colectivo no centro da organização económica e territorial. Que esse é um desejo mais do que legítimo e realizável e que qualquer outro modo económico é uma mistificação alimentada não só por interesses económicos obscuros como também pela comentação televidiota que pretende alimentar o status quo;
- Que questionamos a sociedade de mercado, na qual o padrão de relação entre as pessoas, destas consigo mesmas e com o seu corpo, e destas com a natureza é um negócio onde tudo o que importa é o lucro;
- Que questionamos também os paradigmas da economia dominante que reconhece apenas a produção do mercado e esquece a reprodução social, a “produção” de pessoas e da vida, como contributos essenciais para a economia;
- Que exigimos justiça cognitiva, fazemos por ela e exigimos também justiça na distribuição (de recursos produtivos e de renda), no reconhecimento (das contribuições variadas dos diferentes grupos sociais) e na representação (na linguagem e em todo o domínio do simbólico).
Também publicado no Portugal uncut
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