sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O céu é mesmo um sedutor e é incrível como nos podemos perder nele, só de olhá-lo. No dia em que levantei os meus olhos para o céu era ainda muito nova, tinha recebido um telescópio, e lembro-me que tudo à minha volta era bastante agradável. Claro que toda a gente tinha os seus problemas, mas havia esperança, afinal de contas a vida ia melhorando.

Lembro-me bem do caso singular da família que morava no 3º andar direito do meu prédio, mesmo por baixo de nós. A mãe da casa, a Senhora Emília, juntamente com o seu marido, cujo nome não me recordo (apenas lembro o seu ar bem disposto), tinham três bancas no mercado municipal, mesmo ao lado da Tia Maria, outrora companheira de longas conversas da minha avó. Não precisavam de fazer muita publicidade, a verdade é que toda a gente sabia que ali se encontrava do melhor que podia haver. Era este o sustento do casal, com três filhas, sendo que a mais velha se preparava para ir para a universidade, tornando-se assim a primeira da família a fazê-lo. Conseguem, portanto, imaginar a satisfação destes pais, que como nós viviam (e vivem) numa sociedade em que se não somos doutores ou doutoras somos muito pouco. Mas eu nunca levei a mal o que muitas vezes considerei pobreza de espírito, porque este acontecimento fazia-os, realmente, muito felizes, e era genuíno.

Quando tirei o meu olhar do céu já tinham passado alguns anos. Aluada como era, quando o fiz, já tinha concluído cinco anos em Astronomia e já não ia a casa com muita regularidade. Os meus pais nunca me contaram muita coisa, eles próprios sempre com a cabeça cheia de trabalho e sem horários. Sem trabalho e sem bolsa de investigação, voltei umas semanas à casa deles.

Voltei a pôr os meus olhos na realidade, no sistema subversivo. Não digo que não tivesse noção do que se passava no país ou no mundo, de como são as pessoas que o comandam e programam; pelo contrário, sempre procurei dar a minha contribuição para corrigir o que achava estar errado à minha volta. No entanto, quando me apercebi que ali, num lugar que tanto me dizia, estava tudo ao contrário e eu não só não me tinha apercebido como não tinha feito nada para contrariar isso, foi como se tivesse mergulhado numa nebulosa. Procurei a Emília e o marido e as filhas. Não tardei a arrepender-me. Encontrei-os devastados: o mercado tinha deixado de ser municipal e viram as suas três bancas serem expropriadas, sendo que não receberam qualquer tipo de indemnização. Como se não bastasse: a filha mais velha, com 4000€ gastos em propinas (na mesma universidade que eu), também não tinha arranjado um emprego na sua área e juntava-se agora aos pais na, agora, triste dinâmica do mercado. A verdade é que isso não a amargurava, afinal tinha trabalho com que se ocupar, mas para os pais era um desgosto e o mercado já não era uma grande fonte de rendimentos. Já não havia esperança. Pertencíamos ambas a uma geração sem trabalho, sem futuro. Lembro-me de conversarmos e de ela me dizer que, depois de anos a sonhar em ser mãe, começava agora a questionar-se: “não achas ingrato e egoísta querer pôr mais uma criança neste país? E depois, onde é que a vida está melhor?”

Perguntei à minha mãe se ela sabia alguma coisa da Tia Maria. Contou-me que ela tinha ficado sem a sua banca de flores e que passava os dias sentada à porta da câmara municipal, com a bengala na mão e a alimentar as pombas. Fui procurá-la. Durante o meu regresso às origens tornei-me na sua companhia. Como era Verão passava as noites a contemplar o céu e os dias, esses, passava-os a contemplar a vida à minha volta, do banco em frente à câmara de quem a Tia Maria se tinha apropriado. Dissuadi-a de alimentar os pombos, dando-lhe um monte de motivos para não o fazer. Ela percebeu e deixou de sobrar pão em sua casa. Descobriu-lhe destinos muito melhores: com cevada, fazíamos belos lanches para quem passasse e se quisesse juntar a nós.

Acabei por arranjar um estágio – muito mal remunerado, diga-se – na capital. Lá fui eu, lançada aos que "comem tudo".

Ana Perovskaia

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