quinta-feira, 10 de março de 2011

O poder da agenda da geração à rasca

Poder refere-se à capacidade de produzir ou contribuir para resultados, fazer com que qualquer coisa ocorra através de relações sociais, afectando significativamente um/a outro/a ou outros/as. O poder pode ser visto como algo impessoal - associado a um mecanismo, um sistema ou uma estrutura -, ou como propriedade de alguém, individual ou colectivo. Retomando uma citação de um post anterior [o indivíduo separado, livre, igual é uma ficção eficaz: está na base da legitimidade das nossas sociedades], o mais interessante na recente onda de agitação social que anda por aí e finalmente parece ter chegado a Portugal, parece ser a exposição da ficção do individualismo e o reconhecimento das potencialidades do poder colectivo. O problema é que se a impessoalização do poder torna-o algo alheio à pessoas, e a sua individualização abre espaço ao abuso de poder, a verdade é que a sua forma colectiva complexifica a clarificação de objectivos e o controlo sobre os seus resultados.

Quando a gente egípcia tomou como sua a Praça da Tahrir exigindo a demissão do presidente Mubarak ouviu-se, um pouco por todo lado, o temor: se o presidente sai quem fica no poder? É que não havendo uma proposta de liderança vai ser criado um vazio de poder, e isso é o caos, é a confusão. Este foi aliás o argumento para a defesa de um cenário de transição democrática, assente na conclusão do mandato de Mubarak. Mubarak chegava mesmo, qual pai condescendente, a demonstrar-se capaz de compreender algumas reivindicações, mas dizia-se incapaz abandonar o país num momento tão difícil deixando atrás de si um vazio de poder. As pessoas já tinham expressado a sua vontade, tinham sido ouvidas, agora seria tempo de voltarem a casa, deixarem o governo do país para quem de direito. Como é claro, o povo, a gente egípcia que ocupava a praça não se demoveu. Não pretendia apenas apresentar um rol de queixumes. Tinha um objectivo claro – a demissão do presidente e, com isso, o fim de um regime de décadas de ditadura. Não era de um vazio de poder que se tratava. O que gente egípcia que se foi juntando aos milhões naquela e noutras praças pretendia era o fim de um poder, para podere tomar os seus destinos nas suas mãos. Sabia que isso só era possível começando de novo, do zero.

O protesto da geração à rasca surge numa altura em que imaginário da revolução egípcia estava bem presente. A revolução egípcia teve esse impacto: tudo era possível na vontade e persistência de ocupar as ruas. Trouxe alento para aqueles/as que sentiam necessidade de reinventar a luta, que precisavam de alguma coisa para acrescentar sentido ao protesto. E é neste imaginário que se afirma a geração à rasca. Os Deolinda expressaram a decepção de uma geração. Quem convocou o protesto da geração à rasca soube convocar essa decepção num manifesto e numa data do protesto. Os Homens da luta trouxeram alegria à luta. A novidade foi a lucidez e o humor, o rir para não chorar, o animar para não acomodar. Tudo isto sem “a” liderança, sem "o" programa, sem o dia antes nem o dia depois programados. Nem era preciso. Afinal tratava-se da geração "eu já não posso mais!"; Que esta situação dura há tempo demais.

Tudo isto faz uma confusão terrível, se não tem liderança é porque o movimento é frágil, se não tem programa é porque não sabem o que querem, se convocaram o protesto é porque querem a demissão de alguém [se no caso egípcio a bandeira era a demissão do presidente, no nosso caso, vá-se lá entender porquê, o que era preciso, é óbvio, era a demissão da “classe política"]. Afinal, muitos concluíram, a geração não sabe o que quer, é irresponsável, sempre é rasca. Ou então sabe, e isso é perigoso. O que ninguém entende é que o principal objectivo do movimento não era disputar “o poder” [até podia ser, mas não era esse o caso], mas disputar agenda com “o poder”., impor a sua agenda de problemas, anseios, expectativas. Ou ninguém reparou que se deu uma grande reviravolta na agenda política do país, que deixamos de passar o dia todo a discutir a inevitabilidade das medidas de austeridade e a ameaça do FMI, para passar discutir a inquietação de uma [ou várias] gerações? Que deixamos de falar de números para passar a falar de pessoas? Que deixamos de falar de gente impotente, para falar de lutadores e lutadoras? É verdade, o lindo neste movimento foi reapropriação da agenda do poder, poder enquanto capacidade de produzir resultados, capacidade de produzir mudanças. Não pretendendo disputar "o poder", lançou uma agenda capaz de contribuir para a produção resultados. Foi isso que fez agitar o poder instituído, pelo menos aquele que nos queria fazer acreditar que não há vida além do défice.

Se o movimento não tem liderança, nem partido, se não tem programa, isso é, para muita gente, sinal de que há um "vazio" de poder, não faltando quem queira ocupar esse "vazio". Quando vejo o Presidente-de-todos-os-portugueses-que-nada-tem-a-ver-com-os-políticos [a não ser o facto óbvio de ter sido um dos políticos que mais influiu no rumo do país ao longo dos últimos 30 anos] a colar-se à geração à rasca, como se nada tivesse a ver com estado actual de coisas, não consigo deixar de pensar: olha a grande lata do Sr. Presidente. E a sua lata traz um extra, ao procurar assumir uma liderança e impor um programa: ao fazê-lo, Cavaco procura tomar as rédeas de uma agenda que não é a sua, que foi imposta a partir de baixo, procura tomar as rédeas sobre os resultados do movimento da geração à rasca. Ora, é exactamente a disputa sobre esses resultados o grande desafio que está colocado ao movimento [potenciador de vários movimentos] no [e no pós] protesto do dia 12. O desafio é o do debate sobre políticas, a procura de respostas para a crise actual. O desafio é a criação e valorização de espaços e meios para esse debate. Haja movimento e alegria para isso.

3 comentários:

  1. excelente texto Lídia, e que vem numa altura em que alguns opinion-makers tentam por tudo turvar aquele que é provavelmente o acordar de toda uma geração que se julgava de costas viradas para a política.

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  2. Muito lúcido e esclarecedor este texto... Sobretudo quando diz que o objectivo do movimento que agora surge não é disputar o "poder", mas sim disputar a agenda com o "poder". Pôr as pessoas a reflectir e a falar sobre as "pessoas", seus anseios e desilusões. E isso, sem dúvida, já conseguiu!

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