terça-feira, 8 de março de 2011

A proibição do uso do véu

A 8 de Março de 2011, dia escolhido pelas mulheres egípcias para realizar uma manifestação por uma constituição que consagre a defesa dos direitos das mulheres, publicamos um texto escrito em 2004 por Paula Tavares sobre a polémica da proibição do uso do véu em França [texto disponível no site Memória e Feminismos]. O texto da Paula é uma abordagem lúcida a uma questão complexa, e faz um alerta fundamental: a sociedade civil tem que acordar e olhar para as verdadeiras causas em vez de se deixar entreter com os enfeites. Aqui fica o texto desta bióloga, investigadora e activista ambiental e feminista, tragicamente desaparecida a 8 de Setembro de 2009. Uma homenagem à Paula. A expressão de toda a solidariedade com as mulheres egípcias.

A proibição do uso do véu
escrito por
Paula Tavares, em 2004

Imaginem a obrigatoriedade de usar saias compridas. Tal uniformização ao ser imposta parece-me sinónimo de opressão. Agora imaginem o contrário, que não se podiam usar saias compridas nos locais de ensino público. Não seria também isso uma forma de opressão para os que adoram as roupas em questão?

Também a opressão para as mulheres muçulmanas não reside só na obrigatoriedade do uso do véu, mas também agora na proibição desse véu. Perante a proibição do uso do véu, o seu próprio uso será agora ele próprio um comportamento de libertação face à proibição. Então de onde vem então a falta de liberdade? Vem do véu ou da sua proibição? De ambas. Entenda-se aqui o véu como sendo também o lenço na cabeça a esconder o cabelo, pois também é isso que a lei proíbe.

Não estamos a falar de burkas em que não se vêem os rostos (cujo uso é questionável por razões de segurança). Estamos a falar de lenços sobre o cabelo! Cada uma dessas mulheres não está sozinha nessa prática de cobrir o cabelo com um lenço. Está inserida num contexto social com núcleos familiares de grande interdependência nomeadamente económica, sobretudo nos sectores mais pobres. A proibição arrancará muitas mulheres de meios heterogéneos como é o caso das escolas públicas e remeterá essas mulheres para meios de condutas e ideias muito uniformizadas como é o caso das escolas islâmicas. E por sua vez, na falta de escolas islâmicas em número suficiente muitas mulheres ficarão privadas do ensino e aí sim verão a sua liberdade verdadeiramente afectada por não continuarem a sua escolaridade.

O governo francês com a proibição de símbolos religiosos ostensivos em escolas públicas estará mesmo a querer libertar os jovens de uma forma de opressão face ao domínio religioso da sua família? Ou não estará antes a marginalizar os que pertencendo a famílias mais conservadoras se recusem a abandonar esses símbolos? Estará o governo francês mesmo preocupado com a liberdade religiosa dos cidadãos franceses e com a laicidade do estado? Será esta a melhor forma de travar o avanço do fundamentalismo religioso? Ou não será antes um tiro no sapato, uma vez que os movimentos tendem a beber a sua força em medidas como estas.

Não estará o governo francês a exercer uma forma de controlo mesquinho sobre os milhões de muçulmanos em França? Garantir a liberdade religiosa implica impedir a expressão da religiosidade de cada um? Implica impor a expressão de uma laicidade mesmo que falsa? Ao concordar que o fundamentalismo religioso pode tornar-se um perigo em termos das garantias individuais e da livre expressão de pensamento, então questiono a forma de o enfrentar. Será esta lei a forma correcta?

O que o estado francês está a fazer é atacar o mal de fora para dentro. Quando a meu ver isso deve ser feito precisamente ao contrário: de dentro para fora. A libertação face a comportamentos uniformizados só pode ser um caminho individual e fruto da livre opção de cada um. Não pode ser imposto por um estado, que se julga agora regulador do comportamento e da expressão da identidade de cada um. A laicidade é a meu ver um valor, mas não deve ser utilizado como imposição face a qualquer expressão de religiosidade.

Sou laica porque assim me revejo. Mas se me apetecer usar um lenço na cabeça, quem é um estado para me proibir? Quem é essa entidade estado para determinar que um lenço na cabeça se trata de um símbolo religioso ostensivo? Pode ser ou não. E mesmo que seja? Então e as beirãs? Mulheres que ainda hoje gostam de usar lenço, pressuponho que em parte pelas mesmas razões que os homens usam chapéus. Lenços coloridos para se protegerem do sol no campo e depois uns lenços mais discretos para ir à igreja. Todos esses lenços viraram entretanto a forma de expressar a identidade de uma cultura. Se é verdade que o uso do lenço não foi mantido pelas gerações mais novas, o mesmo não se pode dizer de outros símbolos como a cruz ao peito ainda hoje em uso e associado ao catolicismo. Esse não perdeu força. E vamos agora combater a influência do catolicismo limitando o uso da cruz ao peito? Um lenço a tapar o cabelo ou uma cruz ao peito não constitui nenhuma forma cruel ou irreversível de limitar um ser humano. Mas se assim for sentido por quem o usa deve ser o próprio a conseguir prescindir desse símbolo.

Ao contrário de outras formas, essas sim irreversíveis, como a excisão do clítoris em raparigas de 6 anos ou a circuncisão a bebés do sexo masculino, em que deve ser uma entidade supraindividual a garantir que tal não aconteça antes da idade adulta. Essas formas sim devem ser impedidas de ser impostas, pois são praticadas em idades muito jovens em que o indivíduo não pode decidir em consciência sobre o seu próprio corpo, agravadas pelo facto de muitas vezes deixarem lesões graves para toda a vida. Essas sim devem ser proibidas pois constituem uma violação ao direito que cada indivíduo deve ter de decidir sobre a integridade do seu corpo.

Agora o uso de um lenço na cabeça ou de uma cruz ao peito?
Esta lei do estado francês que afecta sobretudo os muçulmanos em França mas não só, deve ser combatida por todos os que não desejem ver a expressão da sua identidade comprometida ou a sua individualidade violada.

Qualquer dia temos a proibição do sinal na testas das indianas. E não só. Podemos imaginar a proibição do uso de coleiras pelos movimentos punk, a proibição da ostentação de tatuagens ou piercings, a proibição da ‘gay parade’, a proibição de um autocolante ao peito, ou de uma camisola com inscrições ou mensagens. Enfim arriscamo-nos à proibição de todas as formas de expressar a identidade relativamente a uma ideologia seja ela religiosa ou não, devido ao risco de isso poder potenciar um extremar de posições ou um conflito social.

Se é certo que a necessidade de identificação com a religião parece emergir sempre e de novo na humanidade, sendo aí que os interesses geo-estratégicos, políticos e económicos se estão actualmente a alimentar para fomentar e perpetuar guerras. Também é certo que é na injustiça social e na miséria que encontram o maior recrutamento de pessoas. Há excepções, mas o maior recrutamento vem de meios bastante pobres e marginalizados.

É nas pessoas que não têm emprego nem oportunidades de realizarem os seus sonhos, é nas pessoas que viram os seus familiares perseguidos e desaparecidos, é nas pessoas que já nada têm a perder, que a identificação face a um movimento fundamentalista (religioso ou não) surge mais facilmente como uma última missão. Portanto a sociedade civil tem que acordar e olhar para as verdadeiras causas em vez de se deixar entreter com os enfeites. E de novo aqui, em vez de grandes lideranças, urge a manifestação da consciência em cada um de nós.

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